Os riscos do uso indevido e abusivo de dispositivos eletrônicos por crianças e adolescentes serão tema central de grupo de trabalho (GT) instituído pelo governo federal. Portaria publicada nesta quinta-feira (14), no Diário Oficial da União, designa membros de sete ministérios e 19 representantes da sociedade civil, academia e entidades de reconhecida atuação no assunto.
O objetivo é que o trabalho resulte na produção de um guia para uso consciente de telas, com orientações para familiares, cuidadores e educadores, além de servir de base para políticas públicas nas áreas de saúde, educação, assistência social e proteção do público mais vulnerável.
A iniciativa é da Secretaria de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República. Segundo a pasta, entre 2019 e 2022, houve crescimento de 64% nas taxas de lesões autoprovocadas intencionalmente por crianças e adolescentes, em situações como tentativas de suicídio, por exemplo. O dado está relacionado ao uso de telas conectadas à internet por esse público.
A instalação do GT era aguardada por especialistas. “É uma medida importante e urgente, um esforço multidisciplinar e multissetorial que visa a entender demandas e propor caminhos para um uso consciente de telas que precisa envolver Estado, família e toda a sociedade, incluindo empresas, conforme nossa Constituição Federal, no Artigo 227”, destaca Maria Mello, coordenadora do Programa Criança e Consumo do Instituto Alana, entidade de histórica atuação nos direitos da infância e que fará parte do grupo.
A interação de crianças com as telas ocorre cada vez mais cedo e de forma ampla. Cerca de um terço dos usuários da internet no mundo é de crianças de adolescentes, segundo dados da pesquisa TIC Kids online, produzida pelo Comitê Gestor da Internet (CGO.br). Ao todo, 95% das crianças e adolescentes de nove a 17 anos acessaram a internet em 2023. Nas classes AB, 93% acessaram a internet mais de uma vez por dia, nas classes D e E esse percentual caiu para 71%, sendo que a média foi de 83%. Em 2023, 24% dos entrevistados relataram ter começado a se conectar à internet desde o período da primeira infância, ou seja, antes dos seis anos. Em 2015, essa proporção era de 11%. Entre as crianças de nove a 10 anos, 68% disseram ter perfis em redes sociais.
“Importante destacar as oportunidades de aprendizado e entretenimento e acesso a direitos fundamentais dessa presença de crianças e adolescentes no ambiente digital, mas também os riscos de exploração, exposição e acesso a conteúdos inapropriados, presentes sobretudo nos produtos e serviços regidos por modelos de negócios baseados na lógica da economia da atenção, que desempenham papel central nesta dinâmica de ampliação de riscos. Quanto mais tempo as pessoas passam em determinadas plataformas, mais intensamente são submetidas à publicidade e à coleta de seus dados e explorações variadas, assim como mais suscetíveis estarão a estratégias que visam a influenciar e alterar suas preferências e visões de mundo”, diz Maria Mello. O debate, argumenta a especialista, “é menos sobre as telas em si e mais sobre produtos e serviços que não são pensados para promover direitos de crianças e adolescentes, desde sua concepção”.
Múltiplos danos
O pediatra e sanitarista Daniel Becker, um dos integrantes do GT, enumera uma série de prejuízos causados pelo uso prolongado e inadequado desses dispositivos. “Não há mais dúvida nenhuma, na sociedade e na ciência, sobre os danos múltiplos e multidimensionais que o mau uso e o excesso de telas estão causando na infância e adolescência”, afirma. Os prejuízos, segundo o médico, vão desde os físicos, como a prevalência de hábitos sedentários, o desenvolvimento de distúrbios visuais como miopia, e alterações no sono, até comprometimentos cognitivos e emocionais, como a falta de atenção e o pouco desenvolvimento de habilidades interpessoais. A situação é especialmente mais preocupante quando o contato com a telas ocorre em crianças muito pequenas, com até 2 anos de idade.
“Nos pequenos, já está mais do que comprovado. Há estudo com 7 mil crianças mostrando que o uso de telas, em menores de um ou dois anos, leva prejuízos ao desenvolvimento motor, cognitivo e emocional, mais tarde nessa criança mais velha”, diz o especialista. São distúrbios de aprendizado e de atenção, por exemplo. A arquitetura que privilegia vídeos curtos, comuns às redes sociais, fragmenta a capacidade de concentração das crianças. “Ela vai perdendo a habilidade fundamental da leitura, não consegue fixar a atenção numa fala que dure um pouco mais de tempo porque passa a estar acostumada com a hiper estimulação dos vídeos curtos e dessa troca de conteúdo muito rápida”, detalha Becker.
Em termos sociais, outro risco das telas apontado por Daniel Becker tem a ver com o contato de crianças e adolescentes com conteúdo e ideologias extremistas, que pregam violência e preconceito, como machismo, misoginia, racismo, nazismo e similares. Ou mesmo a vulnerabilidade a ações de criminosos, com riscos de exposição à pedofilia, prática de assédio e cyberbullying. Nesse sentido, defende o médico, é preciso que o governo e o Congresso Nacional avancem na aprovação de uma lei sobre liberdade, responsabilidade e transparência das plataformas de internet e redes sociais.
Políticas públicas
O enfrentamento ao problema, alertam os especialistas ouvidos pela Agência Brasil, não deve ser apenas comportamental, com imposição de restrições e outras medidas parecidas, mas depende da garantia de uma série de outros direitos. “É preciso investir em políticas públicas de cuidado com quem cuida, como ampliação de creches, apoio a mães solo, entre outras. Do contrário, as telas continuarão sendo a ajuda”, alerta Maria Mello, do Instituto Alana.
Na mesma linha, Daniel Becker fala sobre a importância de que escolas, família e o Poder Público consigam garantir um leque ampliado de atividades para as crianças e adolescentes, como esportes, cultura, contato com a natureza, fomentando o desenvolvimento integral de habilidade motoras, cognitivas e socioemocionais.
*Com Agência Brasil